Os trabalhos e seus destinos

Observatório Psicanalítico – 105/2019

Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.

 

Os trabalhos e seus destinos

Bernard Miodownik (SBPRJ)

Co-memor-ar é trazer à memória, recordar. E o que recordamos hoje, 1º de maio, Dia Mundial do Trabalho?

Para iniciar, a onipresença do trabalho na história da humanidade e no cotidiano de todos nós. Sempre se está às voltas com o trabalho: exercendo-o, à procura de, satisfeito ou enfadado com, angustiado até desesperado quando sem.

Trabalho tem inserções marcantes na cultura, nas artes e na linguagem. Nascemos após um trabalho de parto. Na escola trazemos trabalhos para casa e aprendemos a trabalhar em grupo. As primeiras identificações fora de casa estão ligadas a trabalhadores (professor(a), médico(a), policial, bombeiro, desportistas, artistas).

No ambiente de trabalho há que se lidar com os próprios narcisismos, seguir ou não as expectativas dos narcisismos dos pais, reviver as rivalidades com irmãos e as relações de amor e ódio com as figuras paternas originárias, transferidas para chefes e chefiados. Trabalha-se conforme as relações de objeto primitivas: ambiciosas, acomodadas, indiferentes, vibrantes, criativas. No trabalho aprende-se a tolerar diferenças, a respeitar regras e leis comuns. Id, Ego e Superego.

Raro o país em que não haverá pelo menos um partido político com trabalho, trabalhador ou trabalhista na legenda.

Na Psicanálise também tem: trabalho psíquico, trabalho de luto, e-labor-ar.

Talvez vocês saibam o porquê desta data, mas não custa lembrar. Em 1886 ocorreu a primeira greve na cidade de Chicago pela diminuição da jornada de trabalho que, naquela época, poderia chegar a 17 horas diárias. Houve confrontos e mortes. Os líderes foram enforcados ou condenados à prisão perpétua. Em 1889, a Internacional Socialista estimulou a comemoração anual neste dia como símbolo da luta por melhores condições de trabalho. Gradativamente, os países foram incorporando a data no calendário oficial. No Brasil em 1924, no governo Arthur Bernardes.

Diante disso, é possível considerar que a história do Dia Mundial do Trabalho sempre nos traz à lembrança os valores de busca do bem-estar e desenvolvimento assim como a luta por justiça?

Sim, porém…

Lembro da forte impressão que me causaram, há muitos anos atrás, os versos de Terra Seca de Ary Barroso:

“O nêgo tá moiádo de suor
Trabáia, trabáia, nêgo
As mãos do nêgo tá que é calo só
Trabáia, trabáia, nêgo”

Um lamento gutural melancólico num compasso rítmico que, no refrão, cada verso assemelhava uma chibatada.

Outra imagem que não esqueço:

“O trabalho liberta”.  O cinismo assassino da porta de Auschwitz. 

“… fria, fria, a frieza do inferno” (Cynthia Ozick em O xale)

Trabalho também lembra exploração, escravidão, suplício, sofrimento, dor e morte.

Listo alguns desafios sobre o trabalho na modernidade para nós psicanalistas:
– a altíssima taxa de desemprego e de subemprego em nosso país que convive com relações de trabalho que vão desde um caráter feudal até as compatíveis com o capitalismo brasileiro no seu estágio mais avançado, que de tão avançado deixa a maioria para trás. Isso nos toca como cidadãos e, como psicanalistas, nos faz pensar em sintomas de uma sociedade doente.
– o uso e abuso do trabalho infantil.
– sonhos desfeitos de jovens devido a uma entrada precoce no mercado de trabalho.
– o excesso de investimento narcísico no trabalho a fim de preencher carências afetivas diversas. As exigências socioculturais exacerbando a necessidade de “mostrar serviço” e acentuando narcisismos mal estruturados. Retornaremos às 17 horas diárias?
– os vazios em que caem os que param de trabalhar devido à aposentadoria ou por virem a apresentar limitações físicas e psíquicas.
– qual será o futuro do trabalho diante da crescente automação?

Um tema constante em nossos encontros científicos recentes foi como lidar com as mudanças na subjetividade causadas, por exemplo, pela Cultura do Narcisismo ou pela Modernidade Líquida.

Que novas subjetividades nos esperam, que vazios psíquicos os postos de trabalho “obsoletos” deixarão? Haverá psicanalistas?

Enquanto esse tempo não vem, unamo-nos, trabalhadores, na comemoração do 1º de Maio. 

Bom Dia do Trabalho para todos.

A quem se interessar, o link com Terra seca na voz de Angela Maria: 

www.youtube.com/watch?v=w3n191g3E-I

( Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).

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