Pandemia do coronavírus, epidemia de pânico e a evolução da humanidade

Observatório Psicanalítico – 150/2020  

Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo 

 

Pandemia do coronavírus, epidemia de pânico e a evolução da humanidade

 

José Martins Canelas Neto (SBPSP)

 

A meu ver a questão decisiva para a espécie humana é de saber se, e em que medida, a sua evolução cultural poderá controlar as perturbações trazidas à vida em comum pelas pulsões humanas de agressão e autodestruição. (Sigmund Freud, O mal-estar na civilização, 1930)

 

​Vivemos uma epidemia de pânico desencadeada pela grave pandemia do coronavírus. Diante da angústia de morte e das incertezas quanto à doença, o pânico aparece entre as pessoas e as reações são as mais variadas. Uma delas é a negação do problema. Vemos isso em todos os países, nos quais as pessoas minimizam o problema e não tomam os cuidados recomendados pelos especialistas e pelos sistemas de saúde, frequentando lugares com aglomeração de pessoas como bares, restaurantes, cinemas, shows, manifestações públicas, etc. De forma semelhante vemos reações de rebeldia, violência, segregação de pessoas que poderiam estar infectadas. 

 

Já entramos numa crise mundial desencadeada por essa pandemia que apesar disso, paradoxalmente, pode nos ajudar a pensar e, quem sabe, começar a mudar nossa visão sobre esse mundo em que vivemos hoje. 

 

Atravessamos um momento histórico sombrio da humanidade, no qual certas políticas e ideologias discriminatórias estão em ascensão; o conhecimento e a ciência são atacados, mesmo após as importantes lições que outras epidemias, o holocausto e outros genocídios nos deram. 

 

Esse quadro é particularmente grave no Brasil onde observamos uma enorme regressão no que concerne nossa consideração e reconhecimento do outro como nosso semelhante, manifestações violentas, desqualificativas e de descaso e ódio em relação aos mais desfavorecidos e àqueles diferentes de nós.

 

Agora fica claro o que Freud já mostrou quando, a partir de 1920, no pós Primeira Guerra Mundial, reformulou sua teoria das pulsões, introduzindo o novo dualismo pulsional: pulsão de vida e pulsão de morte. No texto Psicologia das massas e análise do Ego, e em outros textos, nos mostrou o quanto o ser humano tem nele, em seu âmago mais profundo, a possibilidade de destruição de si mesmo e dos seus semelhantes. 

 

Todos nós estamos sendo forçados a aprender que só sobreviveremos enquanto espécie se realmente levarmos em consideração o outro. Não só o outro ser humano, mas os outros seres vivos e nossa mãe Terra. A ganância e o egoísmo, fomentados pelo “narcisismo das pequenas diferenças”, estão nos levando para a real possibilidade de destruição de nosso planeta e de nossa espécie. 

 

Quando vemos no Brasil e em vários países as pessoas apresentando um comportamento, estimulado pelo pânico da morte, de completa desconsideração pelo ser humano próximo, enchendo os carrinhos nos supermercados de maneira irracional, tentando a todo custo levar vantagem sobre os outros, ficamos tristes e muito preocupados com o nosso futuro enquanto espécie. Mas talvez essa pandemia nos propicie indiretamente a oportunidade de refletir com nosso coração e exercer nossa capacidade de amar a vida e respeitar cada ser vivo. 

 

A ameaça à vida pela pandemia não faz distinções de classe, de cor, de gênero, enfim das singularidades de cada um. Todos estamos ameaçados. Mesmo as classes mais favorecidas, num piscar de olhos, poderão se tornar discriminadas, por exemplo se não houver mais leitos de UTI nos melhores hospitais privados. De nada adianta estocar papel higiênico se o sistema de saúde não conseguir dar conta do atendimento das pessoas que necessitarem, sejam elas ricas ou pobres, homens ou mulheres, qualquer que seja seu gênero, cor ou outra singularidade.

 

Nossa sociedade baseada no individualismo, no lucro desenfreado, no consumismo sem limites, por vezes de produtos extremamente fúteis, essa sociedade será obrigada a ver que a natureza é mais forte, que um simples ser vivo como um vírus pode acabar com nossas vidas rapidamente. Esse é o momento em que será preciso mais do que nunca desenvolver nosso senso do coletivo, nossa solidariedade e nossa civilidade. Cada vida é um milagre precioso e deveríamos honra-la e ter responsabilidade e respeito com ela.

 

No mundo atual, no qual a tecnologia nos permite conseguir tantos progressos, passamos mais tempo nos celulares, mergulhados em nosso universo narcísico individual, do que no cuidado com o outro, com o afeto e o amor pelo ser humano próximo. 

 

Precisamos refletir como dispomos de nosso tempo. Que escolhas fazemos para usufruir de nossa vida. Paradoxalmente agora, com essa pandemia, só poderemos nos relacionar pelos meios virtuais. A necessidade premente do isolamento social vai nos mostrar, assim espero, o quanto o outro humano é importante. Será que conseguiremos aprender a fundamental lição de que o respeito e a responsabilidade pelos outros são essenciais para nosso futuro e o do planeta?

 

Espero que sim! Mas nada é certo. Estamos em um momento de profunda incerteza e precisamos aprender a lidar com ela. É preciso respirar profundamente e acolher uma nova maneira de pensar e ser criativo diante dessas limitações cotidianas que nos estão sendo impostas, podendo transformar então nossa organização da vida e das relações. O vírus nos mata pela impossibilidade de respirar, mas também pela nossa dificuldade de enxergar o outro em sua semelhança e humanidade, nos tornando irracionais e propagadores da morte. É o momento de nos elevarmos enquanto seres de luz e razão e não sucumbirmos ao que há de mais baixo em nós!

 

O momento do sobreviver é o momento do poder. O horror ante a visão da morte desfaz-se em satisfação pelo fato de não se ser o morto. Este jaz, ao passo que o sobrevivente permanece em pé. […] A forma mais baixa do sobreviver é o matar. (Elias Canetti, Massa e poder, 1960)

 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).

 

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