“Uma argentina à frente do grande divã freudiano”

Observatório Psicanalítico 16/2017

Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.

“Uma argentina à frente do grande divã freudiano”

Beth Mori

O título é o da entrevista realizada pelo jornal O Clarín, no último dia 21, com Virginia Ungar, psicanalista da APdeBA (Associação Psicanalítica de Buenos Aires), primeira mulher a ocupar a presidência da IPA (Associação Internacional Psicanalítica).

A mulher, desde sempre, teve sua presença marcada na história da Psicanálise. Já no início Sigmund Freud (1895) se inquietava diante das demandas do corpo feminino e se perguntava “o que quer uma mulher?”. Aprendeu com elas, pessoas comuns, como suas pacientes Ana O. e Dora, muito do que desenvolveu sobre a Psicanálise: uma escuta do que dizem os sujeitos e sua cultura.

A busca pela verdade foi a base do que manifestava o corpo feminino através de suas mais diversas expressões. Freud deslocará o homem centrado na razão a partir da inclusão do inconsciente na constituição da subjetividade. E, ao mirar o desejo (a sexualidade) como aquilo que expressa a fala e suas ações, propõe um método que privilegia a escuta da palavra ao invés do olhar observador pretensamente neutro da medicina clássica. Para Freud, o campo da psicanálise é o acidental, o traumático por natureza. E tanto os fatores traumáticos (ambientais) ou constitutivos quanto os de disposição (hereditários) comporão a constituição psíquica do sujeito (homens e mulheres).

Além de amigas e analistas ativas Lou-André Salomé e Marie Bonaparte, contamos com a presença marcante de Sabina Spieelrein, Helene Deutch, Joan Rivière, no círculo freudiano. No debate sobre a constituição do feminino ressalta-se Helene Deutch, Karen Horney e Melanie Klein. Na verdade, Freud sempre contou com a forte presença de mulheres de sua família: a mãe, a esposa Martha e suas filhas. Ana Freud se destacará na preservação do seu legado.

Muitas mulheres devem ser lembradas hoje em dia tanto no desenvolvimento da teoria como na práxis psicanalítica. Esther Bick inaugura o cuidado atencioso à relação mãe-bebê. Paula Heimann chamará atenção sobre o fenômeno da contratransferência como instrumento de trabalho, com grandes consequências para a clínica, e Madeleine Baranger, com o pensar sobre o campo analítico. Cometo certamente injustiça ao não incluir, neste breve comentário, tantas outras mulheres que ao longo da história da psicanálise vêm contribuindo para a sua continuidade. Mas, não posso deixar de citar uma outra Virgínia (a Bicudo) que foi a primeira psicanalista não médica no Brasil, uma das primeiras psicanalistas brasileiras com trânsito e publicações internacionais. Além de participar da criação das sociedades de São Paulo e Brasília, SBPSP e SPBsb, Virgínia contribuiu também com a psicanálise para a questão racial, sob o enfoque da infância, nos mecanismos relacionados à formação de uma sociedade racista.

Atualmente, evidencia-se uma relação mais complexa das feministas com o saber psicanalítico, que produzirá novos desdobramentos e a ocupação de um lugar de respeito no âmbito dos movimentos progressistas contemporâneos. Na IPA temos a COWAP, o Comitê de Mulheres e Psicanálise, criado em 1998, com objetivo de estimular estudos relativos às mulheres, incluindo, em 2001, a questão de gênero. É um espaço de reflexão teórica e clínica, e de intercâmbio com disciplinas e organizações; produção de pesquisa psicanalítica sobre as relações entre as categorias de sexualidade e de gênero e suas implicações para a psicanálise, reconhecendo as influências culturais e históricas na construção das teorias psicanalíticas relativas a mulheres e homens.

A atuação dos homens é ainda hegemônica na gestão de empresas, organizações, instituições em geral. Por isso, também, o momento é de comemorar a presença de uma mulher no principal cargo executivo da IPA. Ressalta-se que as mulheres já têm exercido a presidência e as diretorias das federadas vinculadas à IPA. Virginia Ungar, graduada em medicina pela UBA em 1974, tem uma trajetória profissional de destaques. Recebeu em 2016 o Prêmio Konex de “Platino a las Humanidades de la Argentina” como psicanalista da década. Virginia vem contribuindo para a compreensão das novas formas da comunicação tecnológica e seus efeitos sobre os sujeitos, seus vínculos e a clínica contemporânea, na qual pacientes e analistas mostram-se inseridos em uma cultura fortemente atravessada pelo intercâmbio virtual. 
Concluo enfatizando o impacto do trabalho das mulheres no desenvolvimento das ideias psicanalíticas e o legado dessa produção intelectual para a cultura contemporânea.

 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).

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