Orfandade e miséria

Observatório Psicanalítico – 95/2019

Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.

Orfandade e miséria

Maria Luiza Gastal (SPBsb)

Em tempos tão desconcertantes, em que a morte de uma criança e o sofrimento de um avô se tornam objeto de ódio, urge pensar sobre como sair desta miséria moral, que mistura racismo, xenofobia, cegueira ética, misoginia. Na belíssima coletânea de ensaios “Leer con Niños”, o filósofo espanhol Santiago Alba Rico escreve sobre a literatura e da narrativa, a partir de sua  experiência de leitura com os filhos. Uma provocação sobre os sentidos de “contar”, caro aos psicanalistas:

“Somente as crianças muito pequenas, os militares e os capitalistas contam números. As coisas finitas, os homens concretos, são incontáveis Por isso não os contamos, mas os contamos. Não fazemos contas com eles, mas contos”.

No ensaio “A guerra entre os solteiros e os órfãos”, Alba Rico e a psicanálise ajudam a pensar o as manifestações de ódio de um dos filhos do presidente e seus seguidores sobre a tragédia que se abateu sobre Lula e sua família – o ódio e a inveja dos solteiros contra as mães. Diz Alba Rico que a solteirice (como a de Barba Azul, Eichmann e o sultão de Scherazade) é a condição dos que, sendo incapazes do amor, calculam (lucros, homens em combate, mortos, benefícios políticos) em lugar de medir (limites, consequências, atos…). O contrário da solterice não é o casamento, mas o amor, e o contrário de estar solteiro não é estar casado, mas enamorado, motivo pelo qual Barba Azul e o sultão, que casaram tantas vezes, permaneceram solteiros (com seus contos, Scherazade salvou sua vida e o sultão da solterice).

Os solteiros têm produzido a história, enquanto as mães (de ambos os sexos), buscam retificar a história – o amor das mães permite que a “a desconfiança seja secundaria e aprendida; é a lei do mundo, mas não seu princípio nem seu destino”. O frágil bebê confia na mãe que dispõe de seu corpo, por isso não começamos com a desconfiança,  e “é possível não somente a luta contra os outros, mas também a luta junto com os outros”. Importante notar que Alba Rico não se refere necessariamente a homens e mulheres, mas a solteiros (mesmo casados), mães (de qualquer sexo) e órfãos (ainda que tenham pais) criados por solteiros.

Winnicott descreve os  primeiros momentos de vida em que o bebê, não integrado, sem sentido de sua corporieadade e sem dimensões de tempo e espaço, se entrega aos cuidados da mãe (de qualquer sexo), de mãos que, embora pudessem destruí-lo, sustentam seu corpo nu, o limpando-o, alimentando-o, cuidando, numa relação de dependência absoluta. Alba Rico também enfatiza a natureza corporal da ligação das mães (de qualquer sexo) com seus vulneráveis filhos.

“A criatura mais frágil no mundo mais atroz, a vida mais débil e menos independente, rodeada de gigantes desconhecidos que a poderiam destroçá-la com uma só mão, não tem medo: sorri. Por um milagre inexplicavelmente repetido (…), a maior vulnerabilidade se converte na máxima segurança; o máximo poder (…) se converte em serviço. Ali onde não chega a lei e onde a desigualdade de forças é absoluta, a mãe olha a criança e, em vez de matá-lo, a veste e a beija; e a criança, em lugar de fechar a cara e chorar, se assossega e dorme tranquila”.

Alba Rico dialoga diretamente com Freud para para trazer o que pensa ser um aspecto não percebido a respeito das raízes do – ora vejam – Complexo de Édipo.

“Freud convenceu a tradição literária ocidental de que todos os filhos querem matar a seus pais quando o que (…) nos conta a história de Édipo – como várias dezenas de mitos e relatos populares (…) é, ao contrario, que são os pais, ou pelo menos os reis, os que querem matar, devorar ou abandoar seus filhos. Laio perfurou os pés de Édipo e, atado como um passarinho, o entregou para que o matassem ; o mesmo fez Astíages com Ciro e pelas mesmas razões; o mesmo se conta num dos mitos fundantes da cosmologia grega, no qual Zeus se salva do apetite assassino de seu pai Cronos, verdugo de outros filhos. (…) Édipo, Ciro, Zeus e até os irmãos Karamazov poderiam dizer – armas em punho – de Laio, Astíages, Cronos e Fiodor: ‘foram eles que começaram!’ (…) Neste mundo, os meninos armados proclamam com tristeza: ‘Meus pais não têm filhos’. E, por sua parte, os pais que os trouxeram a vida para abandoná-los no bosque, poderiam proclamar, (…) mais cínicos do que infelizes: ‘Meus filhos não têm pais’. E assim começa, e assim sempre começou a batalha entre os solteiros e os órfãos (…).

Abraão concorda em sacrificar seu filho como Eichmann concorda em sacrificar a seus descendentes judeus, (…) Se Jeová tivesse pedido a Sara que (…) sacrificasse seu filho, Sara teria se rebelado, não contra as convenções sociais, mas contra Jeová.”

Jeová não ordenou a Sara o sacrifício de Isaac; ao contrário, instruiu Abraão a acordar cedo e sair escondido, enquanto ela dormia, porque Sara (ao contrário de Eichmann) desobedeceria as ordens do líder e protegeria o filho. A interposição do corpo que as mães (de ambos os sexos) fazem, diz Alba Rico, é o que chamamos de amor, como é o amor que faz as mães palestinas interporem seus corpos colocando-se (e não sendo colocadas) como escudos humanos para defender os filhos, ou as mães da Maré protegerem com seus corpos os rebentos das balas dos Caveirões.

Eduardo, Carlos e Flávio são filhos de um pai solteiro e a família presidencial é um exemplo acabado de solterice: calcula (votos, likes, lucros e depósitos), sem nada saber sobre medidas e cuidados, enquanto sacrifica os filhos (ou o povo). Não à toa, a misoginia é sua marca: o feminino (a “fraquejada”) é seu inimigo. Tornamo-nos, como nação, órfãos de solteiros sádicos.

Mas se solteiros fazem a história, “as mães de ambos os sexos, cada vez que se unem, cada vez que se põem de acordo e se alçam todas juntas, a corrigem e a endereçam”. A hora é de escolhas – de saber se ficaremos com Eros ou com Thanatos, encarnado nos solteiros que foram alçados ao poder, com o voto do ódio. A psicanálise, cujo ofício busca na palavra a força da vida, é chamada à luta junto com (e não contra) os outros, ao resgate da medida contra a contagem, e à recusa – em nome da vida – a obedecer ao pai solteiro que, em lugar de oferecer medida e cuidado, busca a aniquilação daquilo que nos faz humanos.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).

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